Hoje (dia 30 de dezembro), já próximo à virada de Ano Novo, eu esperava para ser atendido em uma livraria, porém o funcionário estava ocupado em ouvir o pedido de uma jovem sobre livros de meditação. Ele perguntava: “Mas o que você quer da meditação? Ficar mais calma? Dormir melhor? Tornar-se um Buda?”. Ela rapidamente respondeu: Isso! Isso! Quero me tornar um Buda. Já li vários livros, mas eles não são suficientes; quero algo mais, bem mais. Quero me tornar um Buda!”. O vendedor, então respondeu: “Bom, para isso, você então precisa ‘pegar pesado’, ler coisas bem mais intensas”. E foi buscar alguns livros….
Olhei para eles dois e fiquei tentado a participar da conversa, mas não quis ser inoportuno. Todavia, confesso que isso me lembrou uma historinha que certa vez me contaram. É a seguinte:
“Certa vez, um homem abandonou toda sua vida pregressa para ingressar em um mosteiro. Ao chegar lá, encontrou seu novo Mestre, que lhe deu as boas-vindas. Logo, logo, o homem perguntou: Mestre, agora que poderei meditar duas ou mais vezes por dia, em quanto tempo poderei atingir a ‘iluminação’? O Mestre respondeu, talvez em dez anos. O homem, então pergunta: Mas e se eu me esforçar muito? O Mestre respondeu: Talvez em vinte anos. O homem insistiu: Mas e se eu me esforçar ainda mais? O Mestre, pacientemente, retrucou: Talvez em trinta anos. O homem, então, impaciente, diz: O senhor não está me entendendo! Eu estou falando de um esforço total. Esforço máximo. Não me importará comer. Não me importará dormir. Pensarei nisso o tempo todo, e dedicarei todas as minhas forças e minha vontade nessa direção. E então? Em quanto tempo poderei me iluminar? O Mestre, então, olhou longamente para o novo discípulo e disse: Ah, filho… Receio que toda sua vida não será suficiente. O homem, então, indócil, pergunta: Mas, então, o senhor não me garante que me tornarei iluminado? O Mestre responde: Isso eu não posso garantir. Mas posso dizer-lhe que, provavelmente, você se tornará uma pessoa bem melhor do que é hoje”.
Aí está uma historinha que mostra que o esforço sôfrego, obcecado e impaciente em nada combina com a idéia de iluminar-se ou, como dizem outros, com a idéia de “tornar-se um Buda”. Quando se fala em atingir a iluminação – a plena transcendência – através da meditação, então se deve trilhar aquilo que poderíamos intitular de “caminho meditativo”, que é o caminho supramental, além das correntes de pensamento, além das idéias, além da lógica. Mas, para isso, é preciso exercitar (muito) o chamado “relaxamento da lógica” (vide nosso texto sobre este preceito operacional). Esforço, obcecação, impaciência, são atividades essencialmente mentais… e muito dependentes da lógica. Parafraseando Ramana Maharishi, poderíamos dizer que querer açodadamente tornar-se um Buda, de forma sôfrega, seria como “pedir ajuda ao ladrão para tentar pegar o próprio ladrão”; ou seja, tentar usar a mente para vencer a ilusão de que a mente é tudo.
Osho, que talvez tenha sido o maior de todos os didatas da meditação, foi o autor das palavras de um interessante livro sobre o tema, que se chama “Nem água; nem lua” (editora Cultrix). Sugiro sua leitura. Nesse pequeno livro, ele apresenta diversas histórias, que bem explicam como a iluminação é algo casual, que parece “chegar de surpresa” quando tudo está “pronto”. São histórias como a da monja que espero me lembrar para contar-lhes. Essa monja, antes um bela jovem, depois de muitos anos, já estava desencantada da idéia de se “iluminar”. Ela ainda meditava, porém já sem nenhum objetivo. Sua única outra ocupação era buscar água, que carregava num pote que levantava com auxílio de uma corda sobre os ombros; nesse pote, olhando para a água, ela via o reflexo da lua, todos os dias. Isso era tudo que lhe restava. Ela não pensava em mais nada, mas apenas observava a água no pote, e a imagem da lua que ali se refletia, dia após dia. Toda sua mente estava ali, naquela água e naquela imagem refletida. Porém, um dia, subitamente, o pote caiu e se quebrou; de um momento para outro, tudo se foi; nada mais restava; nem água, nem lua; um enorme, repentino e inesperado vazio se formou; um “completo vácuo de pensamentos”. Nesse momento, subitamente, sua mente se “iluminou”. Não foi planejado, nem pensado, nem desejado, nem esperado, nada disso; nenhuma ação dos pensamentos existiu ali; e algo aconteceu!
Ousando criar neologismos, poderíamos dizer que tornar-se um Buda é algo não planejável, não pensável, não previsível, não conduzível. É como uma manifestação quântica. Não há qualquer preditividade. Sendo uma experiência supramental, ela perverte – ou subverte – o chamado pensamento linear. Em outras palavras, ela viria de fora da linha de pensamentos, e a ofuscaria tal como o sol ofusca uma lâmpada.
Por isso, não adianta “querer” ser Buda, nem “pensar” em ser “Buda”, nem “planejar ser “Buda”. O “estado de Buda” é algo que acontece; simplesmente acontece. É como o ar que preenche o vácuo. É como a luz que preenche a escuridão. Costumo dizer, em algumas de minhas palestras, que meditação, relaxamento, auto-conhecimento, valores espirituais, qualidade de vida, etc, não são mais importantes do que outras coisas. São apenas tão importantes quanto as outras coisas. São tão importantes quão trabalhar, ganhar seu dinheiro, namorar, comer bem… Falamos muito sobre meditação e auto-conhecimento não porque sejam aspectos mais importantes, mas porque são aspectos quase que totalmente esquecidos. Não se investe em “evolução interna” nem um décimo do que se investe em “evolução externa”, e aí está o desequilíbrio. Equilibrar-se não consiste apenas em meditar; mas sim em equilibrar suas ações e dividir sua energia em aspectos externos e aspectos internos de crescimento. Não posso afirmar que isso lhe transformará em um Buda, nem que isso lhe trará a iluminação. Mas, com dizia o Mestre da nossa historinha, isso muito provavelmente lhe tornará uma pessoa cada vez melhor.
Ótimo Ano Novo a todos!