Quando falo sobre meditação, sempre me perguntam se este método não teria, obrigatoriamente, alguma relação com espiritualidade. Sobre esse aspecto, estaremos conversando na coluna deste mês.
Meditação é sinônimo de espiritualidade? Para responder essa pergunta, costumo contar a história do sujeito que queria aprender a voar de asa delta, e começou a procurar algum local onde o aprendesse. Primeiro, se deparou com uma escola de pilotos, onde teria que aprender, antes, a pilotar aviões, planadores e todos os tipos de máquinas voadoras, no meio das quais teria a formação de vôo em asa delta. Depois, encontrou um clube de observadores de pássaros, que ensinava a usar binóculos, subir a mirantes, escalar montanhas, voar de asa delta, enfim, tudo que pudesse ajudar na observação de pássaros. Mais tarde, descobriu um clube de esportes radicais, que ensinava a saltar de pára-quedas, fazer “bungee jump” e, inclusive, a voar de asa delta. Mas não conseguiu encontrar ninguém que o ensinasse apenas a voar de asa delta! Ninguém se propunha a isso! Todos insistiam em oferecer um “pacotão”, no qual o treinamento de asa delta tinha que ser aceito como parte de um conjunto.
O que acontece com a meditação é algo semelhante. Sempre que se procura um local para aprender a meditar, todos querem oferecer um “pacote”, dentro do qual a meditação estaria incluída. É como se lhe dissessem: “Quer aprender a meditar? Pois então aceite isso, aprenda aquilo, acredite naquilo outro, etc, etc.”
Não sou contrário à conotação espiritual da meditação. Reajo, apenas, à obrigatoriedade da conotação espiritual. Por que alguém não pode apenas aprender a meditar? Por que não se pode simplesmente aprender a técnica, sem outras conotações? Por que negar esse direito a tantas pessoas, que hoje resistem à meditação por conta da ligação obrigatória à espiritualidade?
Contudo mesmo no meio acadêmico, esse aspecto também é um tanto polêmico. Um órgão do governo americano, a Agency for Healthcare Research and Quality (AHRQ), recentemente revisou o estado atual da pesquisa sobre meditação. Seu texto completo pode ser acessado através do link: http://www.ahrq.gov/downloads/pub/evidence/pdf/meditation/medit.pdf .
Esta revisão, em dado momento (pág. 194), indica a nossa definição operacional, quando diz (tradução minha): “…As [atuais] definições usualmente se focam [apenas] nos aspectos fenomenológicos da prática da meditação e, com [a única] exceção [da definição] de Cardoso et al., raramente descrevem os necessários componentes práticos e físicos com suficiente detalhamento, de forma que possam ser compreendidas como definições operacionais de meditação…”. Em outro trecho (pág. 3), afirma que (tradução minha) “…O componente espiritual da meditação é pobremente descrito na literatura e ainda não está claro em que forma ou em que extensão a espiritualidade e a crença poderiam exercer algum papel para uma prática meditativa bem sucedida…” . Ainda assim, vários pesquisadores consultados pela mesma Agência, durante a mesma revisão (pág. B-2), apontaram que a meditação estaria (tradução minha) “…envolvida em algum contexto espiritual e/ou filosófico…”. Contudo, referiram que o aspecto espiritual (pág. B-3) deveria ser considerado como (tradução minha): “…importante, mas não essencial…”.
Sob meu ponto de vista, devemos ter certo cuidado ao espiritualizar a meditação, pois, em minha experiência clínica, isso poderia até dificultar o estabelecimento do estado que chamamos de “relaxamento da lógica”.
Por que será que Buda nunca falou em Deus? Por que será que gurus como Ramana Maharishi diziam que não adianta pensar sobre a Divindade? Talvez pela mesma razão que Eliphas Levi afirma que “Deus definido é Deus preterido”. Para “pensar sobre” algo ou alguém é preciso, antes, definir aquele algo ou alguém sobre o que se está pensando. Contudo, para definir, é preciso enquadrar o objeto definido dentro da esfera mental.
Fala-se muito sobre o aspecto supramental, transcendental, da meditação. Diz-se que a meditação está além dos sentidos, além da mente, além da lógica; diz-se que é um exercício de supraconsciência. Pois se assim é, esse estado é encontrado apenas com um amplo “relaxamento da lógica”, em uma experiência que não mais convive com definições e/ou classificações. O que poucos lembram, entretanto, é que mesmo as ideações positivas formam sequências de pensamentos (ver texto sobre relaxamento da lógica, nesta mesma coluna). Quando se pensa, por exemplo, que “…Isto é espiritual. Isso é belo. Isto é lindo. Isso é agradável e sagrado….”, se está encadeando uma seqüência de pensamentos, e esta seqüência deve ser igualmente abandonada para que se obtenha o relaxamento da lógica. Apenas em outro estágio, além das ideações positivas, estará o verdadeiro estado meditativo. Provavelmente, era à isso que se referiam os antigos budistas, quando diziam que “devem ser abandonadas as falsas virtudes, para que surjam as verdadeiras virtudes…”.
Mentalmente falando, a meditação não é uma experiência espiritual. É fato que, ao meditar, 25 a 50% dos principiantes dizem ter experimentado vivências que classificariam como “espirituais”. No entanto, essas devem ser manifestações espontâneas, e não aspectos obrigatoriamente atrelados ao ensino da meditação.
Não quero, com isso, dizer que a meditação não tem um aspecto imponderável. Afinal, o próprio estado meditativo já é o próprio imponderável. Como dissemos em uma publicação recente, do nosso grupo, a meditação é uma manifestação quântica. É algo além da lógica e da mente. Contudo, ainda precisamos defini-la operacionalmente, descortinando claramente seus aspectos técnicos, pois só assim seu uso será disseminado em meio aos serviços de saúde, mundo afora. Essa é a nossa fé e a nossa esperança.
Voltamos a nos encontrar no próximo mês. Até lá!