Em meus estudos de técnicas de meditação, tive contato com inúmeras correntes filosófico-religiosas, e conheci diferentes doutrinas que tentam explicar nossas histórias individuais. Dentre vários conceitos espiritualistas, está o do carma, ou karma. Mas o que isso teria a ver com psicoterapia? O que teria a ver com meditação? Este texto pretende discutir.
As correntes filosófico-religiosas que acreditam na reencarnação também costumam acreditar no que se chama de carma.
Na doutrina espiritista, muito de fala sobre o carma, que corresponderia a uma lei que traz uma reação às nossas ações, com destaque para o que fizermos de mal. Dessa maneira, se fazemos o mal, receberemos o mal em igual proporção. Segundo tal princípio, se ofendemos, seremos ofendidos; se ferimos, seremos feridos; se magoamos, seremos magoados; e assim por diante.
Na filosofia budista e hinduísta, fala-se sobre o karma (termo de origem sânscrita), que representaria um mecanismo semelhante. No entanto, nessas correntes, tal princípio costuma ser considerado tanto pelo lado do mal, quanto pelo lado do bem, em iguais proporções. Assim sendo, poderíamos ter um bocado de mau karma (que nos traria momentos de sofrimento), assim como uma porção de bom karma (que nos traria alguns bônus).
Dentro da doutrina teosófica, alguns preferem diferenciar o karma (lado mau) e o dharma (lado bom), ambos interferindo em nosso destino.
Contudo, o mais interessante texto que já li sobre o tema, foi escrito por Annie Besant (“Karma”, Editora Pensamento). Neste pequeno livro ela reproduz o que seriam as considerações de um de seus luminares professores, conhecido como Mestre Koot Hoomi (Kutumi), que diz:
“…Cada pensamento humano […] sobrevive como inteligência ativa, como um ser gerado pelo Espírito, durante um espaço de tempo proporcional à intensidade inicial da ação cerebral que o gerou. Um pensamento bom perpetua-se num poder benéfico e ativo; um pensamento mau perpetua-se num demônio maléfico. Por esta forma, o homem está continuamente povoando a corrente que o cerca no espaço com um mundo seu, cheio de produtos da sua imaginação, dos seus desejos, impulsos e paixões; esta corrente, por sua vez, vai agir sobre todo o organismo nervoso ou sensitivo, com que entra em contato, com uma força proporcional à intensidade dinâmica [que o gerou]…”
Percebam que, se olharmos com atenção para essas palavras, aí reconheceremos os nossos padrões cognitivos, os nossos vícios de pensamento. Se entendermos que nossas emoções têm relação estreita com o significado que damos aos fatos, aí entenderemos também nossos padrões emocionais. Em outras palavras, poderíamos dizer que o conjunto “cristalizado” de nossos pensamentos, comportamento e emoções, formariam o que chamaríamos de “pacote kármico” de cada ser humano.
Epicteto, filósofo estóico do século I, já dizia que “…não são as coisas que nos ferem, mas a visão que temos dela…”. Tal afirmação teve impacto tão grande, que muitos acreditam que sobre ela se baseia o princípio da terapia cognitiva. Olhamos para um fato através da lente da nossa mente, e damos a ele o significado que essa lente impõe. Diante do mesmo fato, diferentes pessoas podem ter diferentes leituras, desiguais reações, distintas emoções. Diversos psicoterapeutas sempre me ensinaram que não vivemos todos no mesmo mundo; vivemos, cada um, no mundo que o nossa mente vê.
Esse vaticínio, imposto pela mente, seria tão forte que, segundo diversas correntes filosófico-religiosas, se repetiriam vida após vida, e atrairia cada um de nós para as condições que iriam sempre possibilitar a repetição de nossos padrões. Assim, ficaria difícil dizer se João é problemático porque nasceu filho de José ou se João nasceu filho de José porque já seria problemático.
Nossas mentes, no geral, são tão cristalizadas, que é fácil “adivinhar” o que o futuro nos reserva. Acredito que algumas pessoas “adivinham” o futuro de outras porque conseguem perceber os padrões corporais, cognitivos, comportamentais, emocionais, daquela pessoa e, a partir daí, fica fácil depreender que rumo sua vida tomará. Nossas “mentes de robô” são muito previsíveis, embora não percebamos isso tão facilmente. Diferente disso, os homens ditos “iluminados” seriam aqueles que já estariam libertos dos padrões cognitivos, e que reagiriam a cada situação de forma absolutamente particular. Certa vez me contaram uma lenda que, em determinado país, havia certo homem conhecido por sua capacidade de olhar as pegadas de uma pessoa e, a partir das suas marcas, adivinhar seu futuro. De alguma forma, ele apenas examinava para as pegadas de alguém e previa os prováveis acontecimentos do futuro daquela pessoa. Até que, um dia, um homem “iluminado” andou por ali. Horas depois, o adivinho ali chegou e, diante de algumas pessoas, se propôs a adivinhar o futuro do dono daquelas pegadas. Ele ficou ali, parado, por quase uma hora, olhando atonitamente para aquelas marcas, mas nada conseguiu prever. Angustiado, ele começou a seguir as pegadas, pois precisava conhecer tal pessoa, e o que a fazia assim tão diferente. Seria algum grande rei? Seria algum grande mágico? Ele precisava saber, e começou a trilhar o mesmo caminho que as marcas deixavam. Dois dias depois, ele alcançou o homem “iluminado”, e conversou com ele: “Eu esperava encontrar um rei, ou um grande mago, mas olho para você e me parece uma pessoa como as outras. Quem é você? O que você fez para que suas pegadas não me deixassem adivinhar seu futuro?”. O homem respondeu: “Eu sou alguém diferente, liberto das amarras da mente. Eu tenho uma mente, e a utilizo, mas ela não mais me aprisiona. Por isso, não é mais possível prever meu futuro, pois meu futuro não é cristalizado, não é um quadro morto e paralisado; ele é vivo, e por isso está em constante movimento Porém, não se preocupe, pois eu sou menos que um em um milhão. Você continuará a adivinhar o futuro das pessoas, pois encontrará muito poucos como eu. Ainda são raros aqueles que se libertaram dos padrões cristalizados de suas mentes.”. Atônito, o adivinho retornou à sua cidade. Nunca conseguiu explicar esse evento. Mas conta-se que ele, a partir daí, preocupou-se muito mais em se libertar dos seus padrões mentais, do que em fazer a leitura das pegadas alheias.
Certos textos filosóficos sufis, ao ensinarem a tipologia cognitiva humana conhecida como eneagrama, apresentam diferentes tipos humanos, que teriam o que eles chamam de “diferentes máquinas mentais”. Segundo alguns desses textos, libertar-se de sua “máquina mental” é libertar-se do karma, pois uma vez liberto dos padrões mentais cristalizados com que olha para o mundo, um homem torna-se um novo homem, um super-homem, tantas vezes melhor, e tantas vezes mais livre, que é impossível descrevê-lo. Tratar-se-ia de um fenômeno tão grandioso, que só seriam capazes de entender essa libertação aqueles que a atingissem.
O que tem tudo isso a ver com psicoterapia? Tudo. A partir do processo terapêutico é que alguém começa a se libertar dos seus padrões. A partir da percepção de sua condição mental viciosa é que alguém pode se tornar melhor. Quem passou por um processo terapêutico bem conhece esse tipo de crescimento, e esse tipo de libertação. A cada padrão cristalizado que é vencido, parece que ficamos uma tonelada mais leves, e um milhão de vezes mais vivos.
O que tem isso a ver com meditação? Tudo. A meditação permite reduzir a atividade da “mente viciosa”, e muitas vezes ativa áreas cerebrais dantes pouco utilizadas. Ele quebra o padrão cristalizado, “transforma gelo em água”, e modifica nossa visão e nossa relação com a vida.
Não sei o quanto é preciso crescer para se tornar um “iluminado”. Não tenho um “iluminômetro”. Porém imagino que esse crescimento pleno é baseado na libertação igualmente plena dos padrões mentais cristalizados.
Estar além da mente não é ser um descerebrado. Não é “matar” a própria mente. Mas talvez apenas perceber a real condição da mente. A mente passa a ser vista como um gigantesco e espetacular computador, que merece ser admirado e respeitado, mas que é feito para nos servir, e não para nos tornar escravos do sofrimento. Existindo o karma, não sou capaz de explicar seus mecanismos mais intrincados, nem suas verdades mais profundas. Contudo, fica-me a convicção de que o caminho para o seu esgotamento passa menos pelo sofrimento semi-perpétuo, e mais pela libertação de nossas próprias prisões mentais.
Espero, um dia, que ninguém mais seja capaz de ler as nossas pegadas.