Sempre se disse sobre a “extinção do ego”, na meditação. Porém, o ego seria uma parte fundamental da nossa estrutura psíquica. Como, então, poderíamos ficar sem ele? Isso seria possível, ou tudo não passa de um mal entendido? Existe alguma diferença entre o conceito ocidental e oriental de ego? Sobre isso, conversaremos hoje.
Para falar sobre isso, precisamos “começar do começo”, e a primeira coisa a se entender é que temos vários tipos de inteligência.
Temos a inteligência física, na qual as células funcionam sem nossa interferência. Até hoje, nem mesmo os mais estudados fisiologistas entendem o que dá a ordem de partida em vários eventos intracelulares. Ao que parece, temos uma inteligência celular, que opera em favor da manutenção do equilíbrio fisiológico, que também é chamado de homeostase. É a Vida operando a vida.
Outra inteligência –a instintiva – é aquela que faz uma galinha sentar-se sobre o ovo, mesmo que nunca tenha visto outra galinha fazer aquilo; que faz um pássaro voar migrando milhares de kilômetros sem nunca ter feito aquela viagem antes. Até hoje, são inúmeras as teorias que explicam tais eventos, mas nenhuma delas reúne evidências suficientes para ser a teoria definitiva, para explicar o evento causal básico. É a Vida cuidando da vida.
Sobre a inteligência emocional, já ouvimos todos falar, e bastante. Através dela, se expressam as emoções humanas, e bem sabemos que um ser emocionalmente inteligente vive mais, vive melhor e faz sofrer menos aqueles que estão a sua volta. O que são as emoções? Apenas reações aos nossos pensamentos? Parece que não. Alguns estudos controlados laboratorialmente, mesmo com humanos, têm demonstrado que, alguns poucos segundos antes de uma situação, já haveria certa “tendência emocional”, ou seja, áreas do cérebro que correspondem a determinadas emoções, já são ativadas segundos antes de sabermos o que vai acontecer conosco. É como se a emoção fosse uma espécie de “energia acumulada à espera de um fato para se exteriorizar”; como algo ainda não completamente explicado. É a Vida sentindo a vida.
A inteligência mental é a mais conhecida de todos. É aquela que “medimos” nos testes de QI (quociente intelectual). É a inteligência cognitiva, pura. A inteligência da mente. Esta sim, muito estudada, mas cercada de uma série de “verdades” que começam a ser desafiadas. A mente talvez não seja sinônima de cérebro, conforme nos ensinaram. Afinal, se o cérebro puder produzir a mente, então diríamos – em linguagem de informática – que um hardware produziu um software. Dessa forma, vemos que nem mesmo a mais estudada das inteligências é completamente bem entendida. É a Vida pensando a vida.
No entanto, nas últimas décadas, a ciência começa a tatear, timidamente, a percepção de outro nível de inteligência, que vai além daquilo que é “pensável”, ou “previsível”, ou “planejável”. Um tipo de inteligência que vive de eventos “quânticos”, não previsíveis, fora do raciocínio linear e até mesmo fora da linha da lógica. Esse tipo de inteligência tem sido chamado de muitos nomes, mas aqui vou preferir chamá-la de inteligência supramental. Nesse nível, já estamos além da lógica, além do pensamento, num estado contínuo de consciência plena, sem análise, sem julgamento. É a Vida olhando para a vida e tomando consciência de si mesma.
O que tem isso tudo a ver com o ego? Qual a diferença entre os conceitos ocidental e oriental do ego? Bom, vamos agora começar a explicar.
Hoje, vivemos quase que totalmente entregues à inteligência mental. Estamos saindo dos chamados “séculos da mente”, em que a humanidade desenvolveu muito a sua capacidade cognitiva, seu poder de produzir raciocínios cada vez mais complexos. Quando vivemos no terreno da mente, dela mesma (da mente) brota um ser criado por ela, e por seus limites mentais. Um ser que vive quase que exclusivamente na “consciência mental”, eventualmente tocando o terreno emocional, tratando o instintivo como “sombra” e praticamente desconhecendo a inteligência celular. Sobre a inteligência supramental, então, esse nível de consciência nem faz ideia e, por não alcançá-la, faz até piadas sobre ela, o que é normal, pois não se poderia querer que a mente entendesse o além-mente. A partir daí, a mente cria um ser que ela possa compreender, que possa encampar dentro da esfera de ação mental. A principal parte desse ser é o que chamamos de ego, que corresponde a nossa identidade criada pela mente. O ego é um produto da mente, e isso não é um mal em si mesmo.
Afinal, para “conduzir” nossa passagem por esse mundo, a mente precisa fazer coisas como classificar, analisar, delimitar, comparar, prevenir, planejar, dentre várias outras funções lhe cabem no contexto de nossas vidas. Sem a construção do ego, a mente nos veria como desprotegidos, e por isso ela se apressa em construí-lo. O ego é um produto da mente, e tem por função a proteção do ser que ela (a mente) entende como necessitado de sua ajuda. Muito resumidamente, e em palavras muito simples, isso é o que a psicologia ocidental entende como ego. É o ego ocidental. Para continuarmos daqui, e com fins didáticos vou renomear esse “ego ocidental” de EBP (“eu” biográfico pensante), pois o ele é exatamente o que resulta da nossa autobiografia, acrescida à medida que “pensamos o mundo”. Lembre-se, nos próximos parágrafos (abaixo) sempre que eu me referir ao ego estarei me referindo a outro conceito – oriental – de ego, e quando me referir ao EBP estarei me referindo a este conceito – ocidental – de ego.
Então, há outra proposta para se falar neste tema, se olharmos sob o prisma das tradições orientais. Nelas, o problema não é o EBP, mas sim a confusão com ele. Como assim? Segundo essas tradições, o ego seria um falso ser que se forma quando achamos que somos o EBP. Em outras palavras, quando acreditamos que tudo o que somos é o EBP, então aí se construiria uma “pessoa” chamada ego. É claro que essa pessoa não somos nós – em verdade – pois essa pessoa estaria limitada por não acessar a última de nossas inteligências. A sequência de mal-entendidos seria então a seguinte: ainda não alcançamos a consciência supramental, estagnamos nosso progresso na inteligência mental, nos entendemos apenas com os recursos da esfera mental, criamos aí um (falso) ser que se chama ego. Veja que o EBP não é a dificuldade; o problema é crermos que ele é tudo o que somos.
O EBP é produto da mente. Para nos percebermos fora do ego, teremos então que nos perceber fora da mente. Isso acontece bastante com meditadores, quando eles, geralmente depois de meses ou anos de prática continuada, começam a “se perceber pensando”, a perceber a distinção entre o barulho da mente e a sua própria essência. É a realização de que existe algo, vivo, além da mente. A partir desse ponto, existe um enorme bem-estar, porém frequentemente acompanhado de uma grande confusão. Existir além da mente, encontrar um ponto de silêncio, vivo, onde há consciência sem pensamentos, nos obriga a rever o preceito de Descartes. Na linha cartesiana, se diz: “penso; logo, existo”. A partir daí, teríamos que dizer: “percebo que penso; logo, também existo fora do pensamento”. Em resumo: o EBP é produto da mente, e quando vemos que não somos apenas a mente, começamos a perceber que também não somos somente o EBP, e começamos (às vezes lentamente) a olhar para o ego de forma diferente. É como se existisse em torno de nós um filme holográfico, representando a vida mental. Acreditávamos que aquele filme era a única verdade, e agíamos em resposta e obediência a ele. Quando descobrimos que ele é apenas uma sucessão de imagens holográficas, ele não deixa de existir, o mundo mental não deixa de existir, porém percebemos que ele não é tudo. Assim, o EBP continua existindo, e sendo a nossa identidade no terreno mental, porém nossa crença de que ele era tudo que somos se desfaz. O ego (no conceito oriental) se desfaz.
Veja bem, o EBP (o ego ocidental) não deixará de existir após se tocar esse novo nível de consciência. Ele poderá estar bem menos doentio, mais ajustado, mais “sábio”, porém ele continuará existindo. O que deixa de existir é aquele ego sobre o qual as tradições orientais alertavam; aquele ser que acreditávamos que éramos. Uma vez tocada a esfera supramental, ele começa a se desfazer, o meditador começa a sofrer uma espécie de “despersonalização”. Uma vez plenamente e continuamente consciente da esfera supramental, o ego (oriental) se desfaz. Quando entendemos, isso, começamos a entender a confusão acerca de “dissolver” o ego. É natural que muitos terapeutas ocidentais fiquem estarrecidos quando se fala na dissolução do ego. Afinal eles não conseguem conceber como o EBP deixaria de existir, pois se isso acontecesse toda a identidade psíquica do indivíduo estaria desmoronada. Esse mal-entendido acontece porque raramente se explica a confusão entre os conceitos ocidental e oriental do que é o ego.
A partir daí, dessa nova consciência que irá aflorar, o meditador irá começar a rever o que é ele mesmo. O que é sua essência. A mente serve para muitas coisas. Ela nos serve para estudar, para planejar nossa agenda, para fazermos uma lista de supermercado, e até mesmo para elaborarmos uma tese de Doutorado. Ela, porém, não nos seve para uma coisa: ele não se presta a nos permitir saber quem somos nós, em essência, em última instância. Isto é uma percepção necessariamente supramental, além da lógica.
Depois desse encontro, dessa nova consciência, o meditador começará a experimentar a verdadeira Paz. O EBP ficará feliz, poderá estar triste, sentir medo, encher-se de coragem, ficar rico, ficar pobre, porém a essência não mudará. A melhor metáfora para isso é a da onda, que percebe que ela também é o oceano. Tudo acontece com ela, agitações diversas, dias de grandeza, dias de recolhimento, porém em essência ela agora já sabe que não é apenas uma onda, mas que também é o próprio oceano. As ondas mudam, o grande e profundo oceano permanece – quase inalterado. Os movimentos da superfície são pequenos, em relação à totalidade. Da mesma forma, o nosso EBP poderá estar feliz ou infeliz, mas poderemos perceber que a Paz continua existindo, em nossa essência, em nosso âmago.
Veja também que meditação e terapia não são conflitantes. Veja a mente como um espetacular computador, que pode lhe ser muito útil. Porém, você fez uma confusão: acha que você é o computador! O caminho da meditação é aquele que permite não se confundir com o computador, e ter a mente como um (espetacular) instrumento, mas não como sua rainha absoluta. O caminho da psicoterapia é como consertar um computador que vem dando problemas. Algumas escolas ensinam que meditação transcende a mente, e este artigo quer mostrar como isso se torna uma verdade. No entanto, como transcender uma mente que nos ocupa o tempo todo? Como perceber que você não é o computador se ele sempre lhe ocupa, vive dando problemas, lhe “sugando” e lhe atrapalhando a viver? Quanto mais problemática é uma mente, mais ela nos ocupará, mais irá tirar nossa energia, mais nos manterá focados apenas nela e, consequentemente, nos manterá no “transe” ilusório de que somos apenas o que a nossa mente pode entender. Estar em terapia permite ajustar a mente, para que ela se torne menos doentia, e não sugue tanto nossa atenção e nossa energia de vida.
A meditação propicia o fim da confusão com o EBP. Porém, cuidado. Evite dizer que transcender é conquistar, ou dominar, ou destruir o ego. Conquistar, dominar, destruir, são tarefas, que exigem execução, tarefas que exigem ação lógica, e por isso são eventos caracteristicamente mentais, que apenas reforçam o EBP. O objetivo final é a percepção dessa confusão entre você e o EBP, e isso só costuma ser obtido através da observação sem julgamentos, sem análise e sem expectativas, ou seja, através do “relaxamento da lógica” (veja meus textos sobre o assunto), evitando-se preceitos que evoquem ainda mais a lógica.
Medite. Não faça expectativas. Medite. Não analise o seu progresso. Medite. Não julgue o EGO. Esqueça o caminho, esqueça a busca, esqueça a iluminação; esses são conceitos, produtos da mente. A Paz não é uma conquista, é um reencontro. A liberdade não reside na luta contra o EGO, mas no espaço sereno do qual você pode observá-lo.