“Meditar é não pensar em nada”: eis, aqui, um dos maiores erros didáticos no ensino da meditação. Historicamente, esta frase permeou os centros de ensino e treinamento em meditação, campeou entre os textos de revistas e serviu até como alvo de piadas em torno de método. Certamente, muitas pessoas deixaram de praticar meditação e, consequentemente, deixaram de gozar de seus benefícios, por conta dessa frase, que assusta qualquer candidato a meditar.
Quando alguns instrutores falam em “não pensar em nada”, na verdade, estão falando naquilo que costumamos chamar de “relaxamento da lógica”, o tema da nossa coluna neste mês. Este termo foi proposto, pela primeira vez, por Craven, e adotado pelo nosso grupo (CRAVEN JL. [1989]. Meditation and psychotherapy. Canadian Journal of Psychiatry, 34, 648-53).
O relaxamento da lógica é, sem dúvida, o mais sutil dentre todos os aspectos da prática meditativa. Ele consistiria em, durante a prática, em “pretender não analisar” pensamentos ou efeitos, “pretender não julgar” pensamentos ou efeitos e “pretender não criar expectativas” quanto à prática ou seus efeitos. Para isso, o meditador irá “evitar se envolver nas seqüências de pensamentos”. Parece difícil? Talvez. Mas vamos explicar, aqui, parte a parte, esse sutil conceito operacional. Durante o dia, seqüências de pensamentos inundam a nossa mente. Geralmente, um pensamento inicial é produzido, e aí, uma seqüência se inicia. Por exemplo, vem à cabeça o pensamento “…o barulho no motor do carro…”, e aí a seqüência vai se formando em seguida: “…preciso ver o que é esse barulho estranho…”, “…será que hoje vou ter tempo?…”, “…talvez na hora do almoço…”, “…tenho que ver onde vou levar o carro…”, “…vou falar sobre isso com o José…”. Aí então, de repente, um outro pensamento “invade” nossa mente e se forma uma outra seqüência: “…a Maria nunca mais me ligou…”, “…será que ela está zangada comigo?…”, “…acho que vou ligar para ela…”, “…não sei se devo…”, “…acho que vou ligar, sim…”, “…talvez ligue amanhã…”. Aí então, um outro pensamento “invade” a mente e se inicia uma outra seqüência, e assim por diante, várias, várias, e várias vezes durante o dia. Costumo dizer, em minhas palestras, que se conseguíssemos escrever com velocidade suficiente para anotar todos nossos pensamentos, durante um dia todo, um caderno inteiro (dos grandes) talvez não fosse suficiente.
Além disso, ao final do dia, se entregássemos esse caderno a alguém, seríamos imediatamente internados, pois ali estariam um sem-números de pensamentos, em seqüências vertiginosamente numerosa e variada, a maior parte deles sem uma produtividade aparente. Ficamos, então, dia após dia, à mercê dessa corrente de pensamentos, frequentemente entregues a esse ziguezague estonteante, tal como um papel na ventania. Relaxar a lógica é, exatamente, evitar se envolver nessas seqüências de pensamentos. Mas como? Afinal, para “evitar se envolver”, teríamos que usar a lógica. Teríamos que “comprovar” a existência da seqüência de pensamentos, ”analisar” a possibilidade de evitá-la, “julgar” se estamos sendo bem sucedidos, e assim por diante. E todas essas ações, como comprovar, analisar, julgar, são ações que exigem o uso da lógica e, portanto, não poderiam nos ajudar a relaxar a lógica. Dessa forma, “ficamos em uma sinuca”. Para meditar, precisamos relaxar a lógica, mas temos que fazer isso sem usar a lógica, ou usando a menor proporção possível de lógica. E agora?
Para resolver esse enigma, era preciso criar um artifício qualquer, um instrumento operacional que nos permitisse relaxar a lógica sem ampliar a própria lógica, um truque técnico que permitisse “driblar” esse problema: e esse truque é o que chamamos de artifício de auto-focalização, ou “âncora”, que foi tema da nossa coluna mês passado. Na âncora “focamos” a nossa atenção durante a técnica, e para a âncora voltamos, quando nos flagramos envolvidos em alguma seqüência de pensamentos. Quando medita, o praticante mantém-se focado na âncora e sutilmente atento ao possível envolvimento em alguma seqüência de pensamentos. Assim que se perceber levado pela corrente de pensamentos, ele irá, suavemente, retornar toda sua atenção para a âncora. Depois, mais tarde, ele se perceberá envolvido em outra seqüência de pensamentos, e novamente retornará à âncora.
O interessante é que, quando nos percebemos envolvidos na corrente de pensamentos, geralmente percebemos que não estamos mais focados na âncora e; ao voltar para a âncora, deixamos de lado a corrente de pensamentos; ao nos envolvermos novamente em alguma seqüência de pensamentos, perdemos de novo o foco na âncora; e assim por diante. Dessa maneira, diríamos que a meditação, tecnicamente, é operacionalizada através de um dueto básico, composto por âncora + relaxamento da lógica. Focamos na âncora e relaxamos a lógica; perdemos a âncora e percebemo-nos envolvidos na corrente de pensamentos; voltamos a focar na âncora e voltamos a relaxar a lógica; percebemos nova perda da âncora e novo envolvimento na corrente de pensamentos; voltamos à âncora e mais uma vez relaxamos a lógica; e outra vez, outra vez, mais uma outra, até que atingimos o estado modificado de consciência próprio da prática meditativa, dentro do qual ainda persiste um sutil exercício de âncora, só que agora mais estável e com um esforço menor.
Quando nos percebemos envolvidos em alguma seqüência de pensamentos, não devemos “lutar” contra ela. Não devemos tentar “sufocar”, “matar”, “aniquilar” os pensamentos, pois esses são intensos exercícios de lógica. A atitude deve ser de “soltar”, “largar”, “deixar ir embora” a seqüência de pensamentos, assim como largar um balão flutuante daqueles que se compram nos parques de diversões, ou largar um guarda-chuva no vendaval: basta abrir a mão afrouxar os dedos, e permitir que o objeto se vá, sem luta, sem resistência. Outro aspecto, muito importante, é que não são apenas as ideações negativas que nos tiram da âncora, mas também as ideações positivas. Não saímos da âncora apenas quando pensamos em “…o barulho no motor do carro…”, ou em “…a Maria nunca mais me ligou…”. Também saímos da âncora quando pensamos coisas “boas”, tais como “…acho que estou conseguindo…”, ou “…que sensação maravilhosa e santificada…”, ou “…preciso ensinar isso aos outros e distribuir a dádiva deste estado…”. São ideações positivas, agradáveis, mas interferem da mesma maneira tirando o nosso foca da âncora, e vejo inúmeros meditadores, meses ou anos a fio, ”caindo nessa arapuca” das ideações positivas, achando que estão praticando meditação, mas que ao invés disso estão fazendo sutis exercícios de lógica, pois “julgam” como “boas” e “corretas” as sensações que percebem durante a técnica. Cuidado! Meditar pede relaxamento da lógica, e isso só se torna factível quando percebemos que tantos as ideações negativas, quanto positivas, podem alimentar a lógica. Não importa o que aconteça, volte sempre para a âncora. Não importa o que sinta, volte sempre para a âncora.
Não importa o que “veja”, volte sempre para a âncora. Com o tempo, podemos até “evoluir” de técnica, e usar âncoras cada vez mais sutis, experienciando estados também cada vez mais sutis, mas sempre existirá uma âncora, e sempre deveremos retornar a ela, aconteça o que acontecer. Caso contrário, não se saberá que tipo de estado modificado de consciência irá se atingir. Ao perder-se a técnica, tudo vira uma “roleta russa”: podemos entrar em um estado meditativo, em um sutil transe hipnótico, em imaginação criativa, sabe-se lá que direção irá tomar a nossa prática… Âncora e relaxamento da lógica: eis o dueto primordial da meditação. Eis os aspectos mais importantes a serem ressaltados por um instrutor. Ao se ensinar uma técnica, é fundamental destacar essa sequência de focar na âncora – relaxar a lógica; perder a âncora – envolver-se na corrente de pensamentos; focar novamente na âncora – relaxar novamente a lógica; em ciclos repetitivos, pois esta é a base do exercício meditativo. O estado alterado de consciência será, tão somente, a conseqüência natural desse repetido exercício. É claro que, no começo, é um pouco mais difícil, pois o iniciante tem a impressão que vai enlouquecer com tantos pensamentos vindo à sua cabeça e lhe tirando da âncora. Mas, com o tempo, o praticante vai ficando treinado no exercício de âncora, vai dominando mais a técnica, e conseguindo atingir um estado modificado de consciência cada vez com maior facilidade. É uma questão de exercício. É uma malhação neuronal. É uma iniciativa continuada e paciente, mas com promissores resultados. No próximo mês, estaremos falando sobre os diferentes tipos de procedimentos de meditação, suas âncoras e suas práticas: a classificação das técnicas. Um abraço, e até lá!